o que fica

meus olhos não conseguem acompanhar
seus pés no meio dessa multidão, mas hoje eu sei que seu
corpo ocuparia todo o espaço da minha boca
como um bocejo a caminho da cama ou
como saliva lubrificando palavras caladas

noites não menos noites (para ana)

nada de novo
a não ser uma dor na costela
e a promessa de parar de fumar
o lixo de casa transborda
papel sobre papel
mas é por causa dos bichos
que eu corro essa última vez
vou para bem longe
mas ainda consigo ouvir
o farfalhar entre os mortos
interrompem minha ausência
sempre na mesma hora
triste rodeio de palavras
tudo bem
beleza não se guarda
horror de perder esse silêncio

poema para ana

lavar a roupa suja
e ainda encharcada
vesti-la
carregar no corpo
outros dizeres
desafiando sob o sol
a lei da gravidade

demoras

a verdade é que você não
pretende mais lavar os pratos

não quer ir à varanda
sentir o coração acelerar

nem pensa em vasculhar uns olhares
porque tem medo de dimensões

você usa palavras rápidas
a fim de adiar as descobertas

mas escora no tempo ao me mostrar
o que tem entre as pernas

pensamentos...

certo horror a andar descalça
essa coisa de ter os pés no chão
melhor que antes da cabeça
ombros & estômago
a gente comece pelo coração
e pela buceta também
que é gostoso demais
molhar 
mergulhar
fumo debruçada na varanda. tenho barriga cabeça coração
cheios. te vejo passar na rua debaixo.
opto pelo silêncio. tenho vivido um caso de amor pelo manifesto,
mas manuela não cala a boca. saio para ver uns amigos
à noite. topo com você pela rua. penso: não digo. dedinho do pé na quina.
despisto o grito e me despeço da raiva. mero truque.
finjo que foi por acaso.

segunda

vivo apressada, mas não atropelo ninguém. no máximo, faço cara de quem comeu e não gostou. percebem, despisto. mentira. não troco por nada o coração entre os dentes por atos pensados. nunca fui boa em cálculos. como medir as consequências?

quinta

me assusta o preço de quatro pães, as cinco palavras por dizer, que era certo, eu diria. me preocupa como agora elas saírão, porque vão, mas de que forma, em qual estado, matéria. me assusta ter que nomear, por exemplo, o suor frio. a tremura na voz. o repente. o choque. a saída da padaria.

quarta

stela do patrocínio: louca. estamira: louca. você: indizível.
eu: fraude. corrompida. tardia. simulacro.

domingo

anda um bicho em mim. bernardo diria para respeitar as regras. finjo que aceito. na parte de dentro, percebo: não tem patas. noto: faz barulho. fica no meio do corpo. vou de uma cidade a outra com certo incômodo, entretanto resisto. não desço no meio do caminho nem morta. a ida me consome, mas a volta é que me mata. não interrompo mais nada, nem as viagens. deixo andar o bicho dentro de mim. depois é minha vez. vejo um cacho sobre a testa de marina. enxergo um meio de transporte.

terça


acho que foi o texto. a coleção de picadas na perna. os remédios para o corrimento. vou do tesão à melancolia em minutos. é o tempo da padaria até a praça. sacola de pão na mão. subo a ladeira. saio de casa querendo ver marina. vejo katia. josué. guilherme. eduardo. rapha. bárbara, a harpista, me chama atenção. tenho muito a dizer. diálogos ensaiados. pose. é o tempo da padaria até a praça. acho que foram os cabelos no ralo do banheiro. a lua cheia vista pela luneta. o silêncio que me sacoleja. não vejo marina.

segunda

comecei o dia ao contrário. andar de costas é paliativo. lavei as vasilhas de ontem antes de tomar o café da manhã. dos abandonos, o acúmulo. a vida reflete na pia. a desorganização começa a afetar os espaços da casa. as meninas já saíram para passear pela cidade. estão com visitas. aproveito e exploro sem roupa a casa. inauguro assim meu corpo na varanda. não tenho medo. volto e ensaio uma bela trepada no sofá. gozo.

domingo

estou há horas esperando. não tenho muita paciência. encerro antes do prometido as obrigações do dia. obsessão pelo abandono. preciso de. tenho que. vou ligar para. brutalidade cotidiana. há dias descobri que sou uma farsa. interrompo olhares. parto-os em fatias bem servidas. um banquete à disposição. mesa farta. olho bastante para baixo, mas procuro a maior parte do tempo olhar para o horizonte. marina vem. é inédito. sustento.

confissões passionais

I
ontem à noite me bateu uma puta melancolia e como tem dias que a melancolia vira uma tristeza fodida fui ler Manuel António Pina – hoje sei: escrevo/ contra tudo de que me lembro/ esta tarde parada, por exemplo – uma mirabolância dos sentidos acontecendo no lado de dentro. a coisa mais bonita nessa vida é se emocionar. fui dormir quase às 4h. acordei às 8h depois de sonhar que eu fazia xixi numa cachoeira e, ufa, - risos – deu tempo de correr até o banheiro. voltei a dormir como quem não tem o dia inteiro para viver e acordei de novo às 11h11, hora que todo dia uma saudade me acontece. e aconteceu de mais uma vez eu não te procurar, mas você ainda permanece como se esses buracos aqui fossem também sua casa. silêncio: coisa constante. 

II
uso sempre as mesmas palavras para me referir a você. encontrei aquele bilhete para são paulo dentro do livro da Ana C. lembra que lemos esse livro na cafeteria rodeadas de astromélias. lembra? você fez uma foto. clique. ficou bonita. ainda disfarço todo esse amor entre as palavras. a longa gengiva aparecendo. a gargalhada fugida da boca do estômago. o aparecimento repentino em ouro preto ao meio-dia vindo trazer novidades tardias. e meu livro que comprou em Portugal. eu sei, me encantei pelos portugueses. entrego também com atraso seu presente de aniversário. faço que sou dura. mas sinto uma saudade intratável. crueldade intensa com o coração. o amor tremula de mão em mão como o olho pula, involuntariamente. sobressalto-me. 

dois mil & quatorze

antes da sessão de reiki,
viviane lava as mãos com o
palmolive neutro, nenhum

ou muitos dedos quentes
ativam várias das minhas
memórias, é em forma de um

espasmo que me vem o dia
em que seu sorvete de pistache
congelou meu tempo

estratégias

há que se pensar em estratégias
para atravessar esses dias frios
andar sempre com as mãos dentro
dos bolsos, proteger os ouvidos com
alguma voz doce, observar a neblina
mudando de lugar, carregar poemas
de Portugal na cabeça, esperar que
você passe por esse caminho, que
me pergunte quem é Manuel António Pina? tremer
o coração na mão, deixar que certas
palavras escorreguem pela boca
espanto, batimento, língua, permanência

ela: na aula

que sejam as unhas
roídas a mostra ou
o pelo em excesso para
além das cosquinhas, há
algo ali que faz o cor-
ação subir até os dentes

urgência

dizem que se você ficar em silêncio,
dá para ouvir os pedidos de socorro.
pergunto-me se eles não vêm dessas 
casas que ainda mantêm as luzes acesas a essa hora.
culpam a história, mas sobretudo os astros
que dizem algo sobre saturno. mercúrio.
retorno. retrógrado. enfim, sei lá.
parece que, agora, faremos o trajeto de costas.
talvez seja para não perceberem que estamos
indo embora explorar outras áreas,
outros planetas, terras inabitadas,
florestas virgens. talvez. a poesia temerária se
dará a partir da manhã de amanhã. apreciaria,
portanto, sua companhia no frio.
falaríamos sobre a mentira que fomos
até hoje e em como nos transformaremos
em verdade. de como criaremos o sentido para isso.
16 graus agora. não sei bem o que quero
dizer. mas há silêncio. há tristeza. tem
também aquele cara que acredita que os
poemas são só de amor. e o pedido.

ic!

o gosto amargo
acontece logo
depois do soluço
todos sabem que
não é por nada, não
mas manuela exibe
manias terríveis
como a de tirar
certas palavras da
boca com o fio dental

letargia escolar

os alunos chegam em
bando na sala doze

decoraram os textos
sobretudo o silêncio

agora permanecem
estáticos diante do

professor que exibe
espamos e espirros e

uma enorme tristeza
sobre as pálpebras

tem que passar

a noite dificulta enfrentar leões

requer esforço abandonar
o plano na metade da sala

voltar à antiga atividade dos dias

ziguezaguear entre palavras até
encontrar alguma que me rasgue

provável / previsto

o professor bernardo
lê poema triste
e fica triste
lê poema feliz
e fica triste também
combina a blusa
e o sapato
nunca foi bom em disfarçar
os sentimentos

a caminho de casa

a menina com cheiro
de cerveja atravessa
a rua, ergue cumprimentos

dispara faltas e desesperos
sem ter o que dizer, sorrio
penso nos abismos,

nas distâncias e no
frio que sinto mesmo
debaixo de tantas roupas

Nina

livre, a memória
anda presa a você

seu nome virou um verbo
dos mais bonitos,

presente dos diálogos
abissais, gerúndio que te

leva pra cama com meias
de bolinhas coloridas

agenda


a lista de afazeres faz
companhia ao mofo na parede

o tempo é mesmo cruel
ainda demoram para chegar

a alegria, o tremor, o espanto